terça-feira, novembro 30, 2010

O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto.
Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam
mais O cravo brigou com a rosa . A explicação da professora do filho
de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a
rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra
"o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz
/e a rosa ficou encantada".

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da
Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz
parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas
recolhidos no folclore brasileiro?


É Villa Lobos, cacete!


Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê . Na versão da
minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com
a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A
palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina
Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com
uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.


Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar
nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê ? Villa Lobos de novo.
Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor
Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.


Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a
música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem
entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados
para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém
mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o
sentido da desigualdade social entre os homens.


Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e
não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da
Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos
setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de
fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a
alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta
e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do
mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha
louca, diria o velho.



Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém
mais pode usar a expressão coisa de viado ? Que me desculpem os
paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice.
O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade,
da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem
duplo sentido), ofensa a bicha alguma.


Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou
leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical . O crioulo
- vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser
chamado de afrodescendente. O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo
total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais
evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do
quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho
do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos
preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo - outrora conhecido
como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão
- é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser
chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca
não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.


Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o
Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa
tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também
gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.


O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e
2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés
de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no
olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de
Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens , do
velho Bach.


Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais.
O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova,
aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro
funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para
sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor
idade".


Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde.
Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

A lingua mordida pelos dentes

Era uma vez um rapaz que tinha o vício de falar mais do que devia.

- Que língua! – Suspiravam, um dia, os dentes. – Nunca está quieta! Nunca se cala!

- Que estão vocês a murmurar? – Replicou a língua com arrogância. –Vós, os dentes, não sois mais do que servos unicamente encarregados de mastigar os alimentos que eu escolho. Entre nós não há nada em comum e não vos permito que se metam nos meus assuntos.

Deste modo, o rapaz continuava a dizer coisas que não vinham a propósito, enquanto a língua, feliz, conhecia todos os dias novas palavras.

Um dia, o rapaz depois de ter feito uma tolice autorizou que a língua dissesse uma grande mentira. Mas os dentes, obedecendo ao coração, morderam-na.

A língua ficou corada de sangue e o rapaz, arrependido, corou de vergonha.

Desde aquele dia a língua tornou-se cautelosa e prudente e antes de falar pensava duas vezes.
Leonardo da Vinci

A mulher e a patroa.

Há homens que têm patroa. Ela sempre está em casa quando ele chega do trabalho. O jantar é rapidamente servido a mesa. Ela recebe um apertao na bochecha. A patroa pode ser jovem e bonita, mas tem uma atitude subserviente, que lhe confere um certo ar robusto, como se fosse uma senhora de muitos anos atrás.

Há homens que têm mulher. uma mulher que está em casa a hora que pode, às vezes chega antes dele, às vezes depois. Sua casa não é sua jaula nem seu fogão é industrial. A mulher beija seu marido na boca quando o encontra no fim do dia e recebe dele o melhor dos abraços.A mulher pode ser robusta e até meio feia, mas sua independência lhe confere um ar de garota,regente de si mesma.

Há homens que tem patroa, e mesmo que ela tenha tido apenas um filho, ou um casal, parece que gerou uma ninhada, tanto as crianças lhe solicitame ela lhes é devota. A patroa é uma santa, muito boa esposa e muito boa mae, tao boa que é assim que o marido a chama quando nao a chama de patro: "mãezinha"

Há homens que têm mulher. Minha mulher, Suzana. Minha mulher,Cristina.Minha mulher, Tereza. Mulheres que têm nome, que só são chamadas de mãe pelos filhos, que nao arrastam os pés pela casa nem confiscam o salário do marido, porque elas têm o dela. Nao mandam nos caras, nao obedecem os caras: convivem com eles.
Há homens que têm patroa. Vou ligar pra patroa. Vou perguntar pra patroa. vou buscar a patroa. É carinho, dizem. Às vezes, é deboche. Quase sempre é muito cafona.

Há homens que têm mulher. Vou ligar pra minha mulher. Vou perguntar pra minha mulher. Vou buscar minha mulher. Não há subordinação consentida ou disfarçada.Não há patrões nem empregados. há algo sexy no ar.

Há homens que têm patroa.
Há homens que têm mulher.
E há mulheres que escolhem o que querem ser.

Anotações Insensatas

Mas não se pode agir assim, a amiga avisou no telefone. Uma pessoa não é um doce que você enjoa, empurra o prato, não quero mais. Tentaria, então, com toda a delicadeza possível, sem decidir propriamente decidiu no meio da tarde — uma tarde morna demais, preguiçosa demais para conter esse verbo veemente: decidir. Como ia dizendo, no meio da tarde lenta demais, escolheu que — se viesse alguma sofreguidão na garganta, e veio — diria qualquer coisa como olha, tenho medo do normal, baby.

Só que, como de hábito, na cabeça (como que separada do mundo, movida por interiores taquicardias, adrenalinas, metabolismos) se passava uma coisa, e naquele ponto em que isso cruzava com o de fora, esse lugar onde habitamos outros, começava a região do incompreensível: Lá, onde qualquer delicadeza premeditada poderia soar estúpida como um seco: não. E soou, em plena mesa posta.

Tanto pasmo, depois. Sozinho no apartamento, domingo à noite. Todas as coisas quietas e limpas, o perfume adocicado das madressilvas roubadas e o bolo de chocolate intocado no refrigerador — até a televisão falar da explosão nuclear subterrânea. Então a suspeita bruta: não suportamos aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós. Afirmou, depois acendeu o cigarro, reformulou, repetiu, acrescentou esta interrogação: não suportamos mesmo aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós? Não, não suportamos essa doçura.

Puro cérebro sem dor perdido nos labirintos daquilo que tinha acabado de acontecer. Dor branca, querendo primeiro compreender, antes de doer abolerada, a dor. Doeria mais tarde, quem sabe, de maneira insensata e ilusória como doem as perdas para sempre perdidas, e portanto irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos. Que talvez, pensava agora, nem tivessem sido tão paradisíacos assim.

Porque havia o sufocamento daquela espécie de patético simulacro de fantasia matrimonial provisória, a dificuldade de manter um clima feito linha esticada, segura para não arrebentar de súbito, precipitando o equilibrista no vazio mortal. Cheio de carinho, remexeu no doce, sem empurrar o prato. Preferia a fome: só isso. Pelo longo vício da própria fome — e seria um erro, porque saciar a fome poderia trazer, digamos, mais conforto? — ou de pura preguiça de ter que reformular-se inteiro para enfrentar o que chamam de amor, e de repente não tinha gosto?

De onde vem essa iluminação que chamam de amor, e logo depois se contorce, se enleia, se turva toda e ofusca e apaga e acende feito um fio de contato defeituoso, sem nunca voltar àquela primeira iluminação? Espera, vamos conversar, sugeriu sem muito empenho. Tarde demais, porta fechada. Sozinho enfim, podia remexer em discos e livros para decidir sem nenhuma preocupação de harmonia-com-o-gosto-alheio que sempre preferira um Morrison a Manuel Bandeira. Sid Vicious a Puccini. A mosca a Uma janela para o amor, sempre uma vodca a um copo de leite: metal drástico. Era desses caras de barba por fazer que sempre escolherão o risco, o perigo, a insensatez, a insegurança, o precário, a maldição, a noite — a Fome maiúscula. Não a mesa posta e farta, com pratos e panelas a serem lavados na pia cheia de graxa — mas um hambúrguer qualquer para você que escrevo. Mas os escritores são muito cruéis, você me ama pelo que me mata com coca-cola no boteco da esquina, e a vida acontecendo em volta, escrota e nua.

Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade de lidar com. A palavra não vinha. Podia fazer mil coisas a seguir. Mas dentro de qualquer ação, dentes arreganhados, restaria aquela sua profunda incapacidade de lidar com. Um instante antes de bater outra, colocar uma velha Billie Holiday e sentar na máquina para escrever, ainda pensou: gosto tanto de você, baby. Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo — e não entende nada.

Terra do Coração

Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.

Acesa, aceso - vasto, vivo: (...)

segunda-feira, novembro 29, 2010

A Realidade Irrita

“A realidade é um bêbado jogado no chão, até que alguém bata na minha porta e prove o contrário.
É a unha que descascou logo que você saiu do salão, toda feliz. É o barulho [insuportável] do telefone quando está descarregado.
A realidade irrita.
Irrita porque está ali na sua cara e muitas vezes você não quer ver ou vê coisas que não condizem com a sua concepção de realidade. Porque querendo ou não, a realidade é carne crua.
Tem dias que eu visto minha fantasia de otária. Não é nada além de um kit composto de um sorriso de largura 7 cm e um olhar como se alguém tivesse jogado um tubinho de purpurina em você. Aquela coisa meio.. ãmn.. hiperbolicamente brilhante. E quer saber? É uma merda. Dá vontade de mandar meia dúzia de gente tomar no cu e correr pra casa chorando, se trancar no quarto pra tomar um toddy e jogar nintendo até ficar vesga. Isso de escolher qual cara eu vou vestir hoje fode com tudo. Sempre.
Entenda. Pego ônibus as sete e dez e digo olá-árvores. Olá-pássaros. Olá-universitário-que-não-lavou-o-rosto-… E por aí vai, aquele jogo de sorrisos. O dia todo. Todos os dias.
O ônibus que eu pego está sempre lotado de seres que moram em um mundo onde aparentemente não se vende desodorante. A escola está numa velocidade dez quilômetros por ano. Minha sobrancelha está mal feita.
É, eu confesso que não é exatamente a realidade que eu esperava encontrar.
[A realidade que eu mais gosto está longe, bem longe. Eu e você, pãezinhos com requeijão, lençol bagunçado sobre a cama, luz entrando pela janela, coca-cola com gelo e limão.]
Talvez isso mude. Talvez você entre na minha vida sem tocar a campainha e me seqüestre de uma vez. Talvez você pule esses três ou quatro muros que nos separam e segure a minha mão, assim, ofegante, pra nunca mais soltar. Talvez você ainda possa pular no rio e me salvar.
Ou talvez eu só precise de férias, um porre e um novo amor.
Porque no fundo eu sei que a realidade que eu sonhava afundou num copo de cachaça e virou utopia.”

A Árvore e a Vara

Uma árvore que crescia lindamente, erguendo em direção ao céu sua copa de tenras folhas, reclamou da presença de uma vara de madeira velha e seca que estava ao seu lado.

- Vara, você está perto demais de mim. Não pode chegar mais para lá?

A vara fingiu nada ouvir e não deu resposta.

Em seguida a árvore virou-se para a cerca de espinhos que a circundava.

- Cerca, você não pode ir para outro lugar? Você me irrita.

A cerca fingiu nada ouvir e não deu resposta.

- Linda árvore – disse um lagarto, levantando sua sábia cabecinha para olhar para a árvore – você não vê que a vara está mantendo você reta? Não percebe que a cerca está protegendo você contra as más companhias?

A Aranha e o Buraco da Fechadura

Após ter explorado a casa toda, por dentro e por fora, uma aranha resolveu esconder-se no buraco da fechadura.

Que esconderijo ideal! Pensou ela. Quem jamais havia de imaginar que ela estava ali? E além disso podia espiar para fora e ver tudo o que acontecia.

Ali em cima disse ela para si mesma, olhando para o alto da porta:

- Vou fazer uma teia para moscas ali embaixo. – olhando a soleira, observou: - Farei outra para besourinhos ali. Ao lado da porta, vou armar uma teiazinha para os mosquitos.

A aranha estava exultante. O buraco da fechadura proporcionava-lhe uma nova e maravilhosa sensação de segurança. Era tão estreito, escuro, e era revestido de ferro. Parecia-lhe mais inexpugnável que uma fortaleza, mais garantido que qualquer armadura.

Imersa nesses deliciosos pensamentos, a aranha ouviu o som de passos que se aproximavam. Correu de volta para o fundo de seu refúgio.

Porém a aranha esquecera-se de que o buraco da fechadura não havia sido feita para ela. Sua legítima proprietária, a chave, foi colocada na fechadura e expulsou a aranha.

Crônica Qualidade de Vida

Antigamente, não havia qualidade de vida.
Quer dizer, não se falava em qualidade de vida.
Agora só se fala em qualidade de vida e, em matéria de qualidade de vida, sou um dos sujeitos mais ameaçados que conheço.
Na verdade, me dizem que venho experimentando uma considerável melhora de qualidade de vida, mas tenho algumas dúvidas.

Minha qualidade de vida, na minha modesta opinião pessoal, não tem melhorado essas coisas todas, com as providências que me fazem tomar e as violências que sou obrigado a cometer contra mim mesmo.

Geralmente suporto bem conversas sobre qualidade de vida, mas tendo cada vez mais a retirar-me do círculo ou recinto onde me encontro, quando começam a falar nela.
A comida mesmo me faz estar considerando, no momento, comprar uma balança de precisão e um computador de bolso com um programa alimentar especial.

Antes eu comia do que gostava. Fui criado, por exemplo, com comida frita na banha de porco ou, mais tarde, na gordura de coco.

Meus avós, todos mortos depois dos noventa (com exceção do que só comia o saudabilíssimo azeite de oliva - e ele morreu de AVC) comiam banha de porco e torresmo regularmente, mas, claro, ainda não tinha sido informados de que se tratava de prática mortal.

Aliás, comida saudável, que se ensinava nos manuais até para crianças, era composta de leite integral, ovos, pão (com manteiga), carne vermelha ou peixe - frito, então, era uma maravilha para estômagos delicados - frutas e legumes à vontade.

Depois disso, até atingirmos a atual qualidade de vida, fulminaram o leite.
Alimento completo, passou a ser encarado com desconfiança, e hoje não sei de ninguém que beba leite integral, a não ser, talvez, algum gorila do Zoológico.

O ovo sofreu ataque violentíssimo, assim como o açúcar, a ponto de, tenho certeza, várias receitas tradicionais de doces serem hoje achados arqueológicos, e as poucas que restam constituam uma imitação desenxabida das que empregavam ingredientes normais e não essas massas e líquidos insossos que vivem distribuindo, como leite, manteiga etc.

Claro, mudaram de idéia a respeito do ovo recentemente, mas a mudança de idéias deles só pode ser vista com desconfiança.

Não houve o tempo, e não é preciso ser nenhum Matusalém para lembrar, em que para substituir a manteiga era exigida margarina, alimento saudabilíssimo, que não fazia nenhuma das monstruosidades operadas pela manteiga? O negócio era margarina e durou bastante, até que descobriram que margarina pode ser até pior do que manteiga.Melhor, na verdade, abolir manteiga inteiramente. E margarina, claro, nem pensar.
Carne vermelha é uma abominação.
Carne de porco é um terror.
Vísceras de qualquer tipo devem ser evitadas como o diabo foge da cruz.
Açúcar, meu Deus! Sorvete? Só para crianças, e crianças de pais irresponsáveis.

Aliás, é um bom desafio achar algo unanimemente aprovado pelos nutricionistas, a não ser, tudo indica, capim.
Mas ninguém pode viver de capim, de maneira que, relutantemente, deixam a gente comer uma coisinha qualquer, contanto que não ultrapassemos o limite de calorias e não ingiramos o proibido e, mesmo assim, com restrições.

Peixe cozido ou grelhado, por exemplo, geralmente pode, mas paira sobre seu infeliz consumidor a ameaça de que não esteja fresco ou esteja contaminado por metais pesados e pelo lixo que jogam em rios e mares.
Peito de frango (e eu que sou homem de coxas e antecoxas) também assusta, por causa dos hormônios que dão às galinhas e as neuroses que elas desenvolvem, nascendo sem mãe e sendo criadas em cubículos em que mal podem se mexer, a ponto de terem de ser debicadas, para não se autodevorarem histericamente.

Ou seja, mesmo comendo um peito de galinha sem uma gota de qualquer gordura e acompanhado somente por matos e alguns legumes (cuidado com a contaminação de tomates, cenouras e alfaces!), o infeliz se arrisca.

Mas vou usar o computador para calcular as calorias, as gorduras e outras características de cada refeição, porque, agora que minha qualidade de vida está melhorando a cada dia, preciso ser coerente.

Fumar, não mais, nem uma pitadinha depois do café (que ninguém sabe direito se faz bem ou faz mal, temperado com adoçante, que também ninguém sabe se faz bem ou faz mal). Beber, esqueça, vai deixar você demente aos 60, além de dar cirrose e hepatite.
O famoso copinho de vinho, além de ser uma porção ridícula, também está sendo questionado no momento. Parece que não é bem assim, e uma autoridade no assunto disse outro dia no jornal que o melhor é tomar suco de uva - não industrializado, é claro, por causa dos aditivos.

Restam também os exercícios.
Fico felicíssimo, quando, suando e bufando no calçadão, sinto o ar fresco invadir os meus pulmões (preferia logo uma tenda de oxigênio), as pernas doendo e a certeza de que minha qualidade de vida vai cada vez melhor.
Até minha pressão arterial (13 a 14 por 8), que era considerada boa para minha idade, agora já é alta e o pessoal dos 12 por 8 já começa a entrar na faixa de risco.

Enfim, é duro manter esta boa qualidade de vida, ainda mais agora que me anunciam que caminhadas somente não bastam, tem de malhar também.
Ou seja, temos que nos dedicar o tempo todo a manter nossa qualidade de vida.

Mas, aqui entre nós, se vocês no futuro virem um gordão tomando caldinho de feijão com torresmo no boteco, depois de um chopinho, e o acharem vagamente parecido comigo, talvez seja eu mesmo, sofrendo de uma pavorosa qualidade de vida.
A diferença é grande.
Tanto eu quanto vocês vamos morrer do mesmo jeito, mas vocês, depois da excelente qualidade de vida que estão desfrutando aí com sua rúcula com suco de brócolis, vão ter uma ótima qualidade de morte, falecendo em perfeita saúde e eu lá, no meu velório, com um sorriso obeso e contente no rosto dissoluto.

Aventura Indiana Traduzida pelo Ignorante

Durante a sua estada na Índia, Pitágoras aprendeu com os ginossofistas, como todos sabem, a linguagem dos animais e das plantas. Passeando um dia por um campo à beira-mar, ouviu estas palavras: “Que desgraça a minha ter nascido relva! Mal chego a duas polegadas de altura, vem logo um monstro devorador, um animal horrível, que me aplastra com seus largos pé; a sua boca é armada com uma dupla fila de foices cortantes, com a qual me arranca, me tritura e me engole. Os homens, chamam a esse monstro de ovelha. Não creio que haja no mundo mais abominável criatura.”

Pitágoras avançou alguns passos e topou com uma ostra que bocejava sobre um rochedo. O filósofo ainda não havia adotado essa admirável lei que nos proíbe comer aos animais nossos semelhantes. Ia, pois, engolir a ostra, quando a pobre pronunciou estas comoventes palavras: “Ó Natureza! Como é feliz a relva, que é, como eu, obra tua! Ela, depois de cortada, renasce: é imortal. E nós, miseráveis ostras, em vão somos defendidas por uma dupla couraça; e uns celerados nos comem às dúzias, ao almoço, e tudo se acaba para sempre. Que terrível o destino de uma ostra, e como são bárbaros os homens!”

Pitágoras estremeceu; sentiu a enormidade do crime que ia praticar: debulhado em pranto, pediu perdão à ostra e colocou-a cuidadosamente sobre o seu rochedo.

De regresso à cidade, a meditar profundamente sobre essa aventura, viu aranhas que comiam moscas, andorinhas que comiam aranhas, gaviões que comiam andorinhas. “Esse pessoal todo – dizia ele consigo – não tem a mínima filosofia”.

Ao entrar na cidade, foi Pitágoras atropelado, contundido, derrubado por uma multidão de cretinos e cretinas que corriam a gritar: “Bem feito! Bem feito! É mesmo merecido!”

— “Quem? O quê? Como!” – disse Pitágoras, erguendo-se do chão. E a gente sempre a correr, exclamando: “Ah! como não vai ser bom vê-los cozer!”

Pitágoras julgou que falavam de lentilhas ou quaisquer outros legumes; absolutamente: tratava-se de dois pobres hindus. “Ah, sem dúvida – pensou Pitágoras – são dois grandes filósofos que estão cansados da vida e querem renascer sob outra forma; é um prazer mudar de casa, embora se fique sempre mal alojado; de gostos não se discute.”

Avançou com a multidão até a praça pública e foi lá que viu uma grande pira acesa e, defronte a essa pira, um banco a que chamavam tribunal, e, nesse banco, uns juízes, e esses juízes seguravam todos uma cauda de vaca e usavam todos um barrete que se assemelhava perfeitamente às duas orelhas do animal que transportou Sileno, quando este veio outrora à Índia em companhia de Baco, depois de atravessarem a seco o mar Eritreu e terem feito parar o sol e a lua, como vem fielmente descrito nas Órficas.

Entre esses juízes havia um excelente homem conhecido de Pitágoras. O sábio da Índia explicou ao sábio de Samos em que consistia a festa que iam oferecer ao povo indiano.

“Os dois hindus” – disse ele – “não têm o mínimo desejo de ser queimados; os meus graves confrades condenaram ambos a esse suplício: um por haver dito que a substância de Xaca não é a substância de Brama; e o outro, por haver suspeitado que se podia agradar ao Ser Supremo pela simples virtude, sem que seja preciso, à hora da morte, segurar uma vaca pela cauda; pois que, dizia ele, a gente pode ser sempre virtuoso, mas nem sempre se encontra uma vaca à mão. De tal forma se horrorizaram as boas mulheres da cidade com tão heréticas proposições que não deram descanso aos juizes enquanto estes não mandaram os dois infelizes para a fogueira.”

Pitágoras considerou que, desde a relva até o homem, há sobejos motivos de aborrecimento. No entanto, fez que os juízes, e até mesmo os devotos, ouvissem a voz da razão; e foi essa a única vez em que tal coisa aconteceu.

Em seguida foi pregar tolerância em Crotona; mas um intolerante lhe ateou fogo à casa: e Pitágoras morreu queimado, ele que tirara dois hindus da fogueira…

Salve-se quem puder!

Os Dons das Fadas

Realizava-se a grande reunião das fadas, a fim de procederem à partilha dos dons entre todos os recém-nascidos das últimas vinte e quatro horas.

Muito diferiam umas das outras, todas essas antigas e fantasistas Irmãs do Destino, todas essas Mães estranhas da alegria e da dor: umas tinham aparência sombria e rebarbativa, outras a tinham folgazã e maliciosa; umas eram jovens, e sempre o haviam sido, outras eram velhas, e também sempre o haviam sido.

Todos os pais que acreditam nas Fadas haviam comparecido, cada qual trazendo nos braços o seu recém-nascido.

Os Dons, as Faculdades, os Bons Acasos, as Circunstâncias Invencíveis, estavam amontoados ao lado do Tribunal, como os prêmios sobre o tablado, em dia de distribuição de prêmios. O que havia de particular no caso é que os Dons não eram a recompensa de um esforço, mas pelo contrário, uma graça concedida àquele que ainda não vivera, uma graça capaz de determinar seu destino e de se tornar tanto a origem de seu desdita, quanto de sua felicidade.

As pobres Fadas estavam sobrecarregadas de trabalho, porque era grande o número dos solicitantes, e o mundo intermediário colocado entre o homem e Deus está submetido, tanto quanto nós, à lei terrível do Tempo e de sua infinita posteridade, os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.

Na realidade, elas estavam tão atordoadas quanto ministros em dia de audiência, ou empregados do Estabelecimento de Penhores, quando um dia de festa nacional autoriza as restituições sem pagamento. Acho mesmo que olhavam, de vez em quando, para o ponteiro do relógio, com impaciência igual à de juizes humanos que, por estarem em função desde cedo, não podem deixar de sonhar com o jantar, a família e os queridos chinelos. Se, na justiça sobrenatural, há um pouco de precipitação e de acaso, não nos admiremos que o mesmo aconteça às vezes na justiça humana. Nós mesmos seríamos, em tal caso, juizes injustos.

Dessarte foram cometidas, nesse dia, algumas tolices – que poderíamos estranhar, se a prudência, e não a fantasia, fosse a característica peculiar, eterna, das Fadas.

Assim o poder de atrair magneticamente a fortuna foi concedido ao único herdeiro de uma família riquíssima que, não possuindo noção alguma de caridade, como também nenhuma cobiça dos bens visíveis da terra, devia encontrar-se, mais tarde, grandemente atrapalhado com seus milhões.

Assim foram concedidos o amor ao Belo e a Força Poética ao filho de um triste pobretão, um cavoqueiro absolutamente incapaz quer de favorecer os dotes, quer de prover às necessidades de sua lamentável progênie.

Esquecia-me de lhes dizer que a distribuição, em tais casos solenes, não comporta apelação, e que nenhum dom pode ser recusado…

Todas as Fadas já se estavam levantando, julgando concluída sua tarefa, porque não restava mais presente algum, munificência alguma para atirar a toda aquela nulidade humana, quando um bom homem, um pobre e modesto negociante, creio eu, ergueu-se e, agarrando por sua veste de vapores policrômicos a Fada que lhe ficava mais próxima, exclamou:

- Oh! Senhora! está-nos esquecendo! Ainda falta meu pequeno! Não quero ficar sem receber coisa alguma!

A Fada deveria ficar perplexa, porque não restava mais nada.

Todavia, lembrou-se ela a tempo de uma lei bastante conhecida, embora raramente aplicada, no mundo sobrenatural, habitado pelas deidades etéreas, amigas do homem, e muitas vezes forçadas a se adaptarem às suas paixões, tais como as Fadas, os Gnomos, as Salamandras, as Sílfides, os Silfos, os Nixos, os Ondinos e as Ondinas, – quero referir-me à lei que concede às Fadas, em semelhante caso, isto é, no caso de os presentes se acabarem, a faculdade de concederem mais um, suplementar e excepcional, sob condição, todavia, de ela possuir imaginação bastante para criá-lo imediatamente.

Por isso a boa Fada respondeu, com uma segurança digna de sua situação:

- Dou a teu filho… dou-lhe… o Dom de agradar!

- Mas agradar como? agradar? por que agradar? – perguntou teimosamente o pequeno comerciante, que sem dúvida era um desses raciocinadores tão comuns, incapazes de se elevarem até a lógica do absurdo.

- Porque sim! porque sim! – replicou a Fada, colérica, voltando-lhe as costas; e, reunindo-se ao cortejo de suas companheiras, dizia-lhes:

- Que acham desse francesinho vaidoso que tudo quer compreender e que, havendo obtido para o filho o melhor quinhão, ainda ousa interrogar e discutir o indiscutível?

domingo, novembro 28, 2010

Sinaá - O Fim do Mundo

Sinaá, o mais poderoso pajé da tribo Juruna, era filho de mãe índia e pai onça. Do felino herdara o poder de enxergar também pelas costas, o que lhe permitia observar tudo o que se passava ao seu redor. Caminhava com sua gente por toda a região, ensinando a seus companheiros serem bons e bravos. Seu povo alimentava-se de farinha de mandioca, raspa de madeira, jabutis e sucuris, cobras imensas que habitavam na água. Certa vez, uma enorme sucuri foi capturada e queimada por haver devorado diversos índios. Inesperadamente brotaram de suas cinzas diversas espécies de vegetais, como a mandioca, o milho, o cará, a abóbora, a pimenta, e algumas plantas frutíferas, até então desconhecidas para aquela tribo.

Foi um pássaro surgido do céu que os ensinou a utilizar e preparar tais alimentos e também a fazê-los multiplicar-se. A partir daquele dia, fartas roças se formaram. Para garantir o sustento de seu povo, Sinaá, face às fortes chuvas e à ameaça de grande inundação, construiu uma imensa canoa, onde plantou mudas de cada espécie. Em poucos dias o rio transbordou e a enchente cobriu toda a região, mas o grande pajé livrou seu povo da fome. Já mais velho, Sinaá casou-se com uma aranha, que lhe teceu novas vestes pra melhor abrigá-lo. Chegando a atingir idade bastante avançada, já ostentava longas barbas brancas. Seus poderes, porém, permitiam-lhe remoçar a cada banho de cachoeira, para que pudesse viver até o fim de seu povo, como tanto queria. Quando isso ocorresse, Sinaá derrubaria a forquilha de uma enorme árvore que apontava para o céu, sustentando-o. O céu desabaria sobre todos os povos e o mundo teria o seu fim.

Embriaguem-se

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vega, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo,embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso” Com vinho, poesia ou virtude, a escolher”.

Dá-me a Tua Mão

Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

Uma Árvore de Natal e um Casamento

Um dia destes, vi um casamento… mas não, prefiro falar-vos de uma árvore de Natal. Achei o casamento bem bonito, mas a árvore de Natal me agradou mais. Nem sei como, olhando para o casamento, me lembrei da árvore. Eis como o caso se passou.

Há cerca de cinco anos fui convidado, na véspera de Natal, para um baile infantil. A pessoa que me convidou era um conhecido homem de negócios, cheio de relações e maquinações, e, assim, não se há de estranhar que o baile infantil servisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, no meio da multidão, se ocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e surpreendido.

Como houvesse chegado ali por acaso e não tivesse nenhum assunto comum com os outros, passei a noite de maneira muito independente. Havia mais um cavalheiro que, como eu, não tinha, decerto, conhecidos no grupo, e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes de todos. Era um homem alto, magro, muito sério, vestido muito decentemente. Notava-se que a felicidade da família não lhe comunicava a menor alegria; mal se retirava a um cantinho, cessava de sorrir e franzia as sobrancelhas espessas e negras.

Afora o dono da casa, não conhecia vivalma em todo o baile. Via-se que ele se entediava horrivelmente, mas que resolvera manter até o fim o papel do homem que se diverte e é feliz. Soube depois que era um provinciano vindo à capital a algum negócio importante e complicado. Trouxera carta de recomendação para o nosso hospedeiro, que o protegia, porém, não con amore, e o convidara, por cortesia, para o baile infantil. Não jogavam cartas com o provinciano, ninguém lhe oferecia um charuto nem com ele entabulava conversação, talvez porque reconhecessem de longe o pássaro pela plumagem, e, deste modo, o meu cavalheiro via-se obrigado, para ter que fazer das mãos, a alisar a noite inteira as suas suíças. Eram, aliás, umas suíças realmente belas – porém ele as acariciava com tanto zelo que a gente, ao fitá-lo, sentia-se inclinada a pensar que primeiro vieram ao inundo as suíças e só depois o homem, para cofiá-las, inserido entre elas.

Além desse personagem, que tomava parte na felicidade do dono da casa, pai de cinco garotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar, outro conviva caíra no meu agrado. Mas este era de aspecto completamente diverso. Era um personagem a quem os outros chamavam Julião Mastakovitch. Percebia-se à primeira vista que era ele o convidado de honra. Estava para o dono da casa como este para o cavalheiro que afagava as suíças. o dono e a dona da casa falavam-lhe com amabilidade extraordinária, cortejavam-no, enchiam-lhe o copo, amimavam-no, e lhe apresentavam, recomendando-os, vários convidados, ao passo que a ele não o apresentavam a ninguém. Notei até uma lágrima nos olhos do hospedeiro quando Julião Mastakovitch observou que raras vezes passara o tempo de maneira tão agradável como naquela noite. Comecei a sentir-me acabrunhadíssimo em presença de semelhante figura, e, depois de haver admirado as crianças, retirei-me a um pequeno salão, totalmente vazio, e fui sentar-me sob o florido caramanchão da dona da casa, o qual ocupava quase a metade de toda a peça.

Eram as crianças incrivelmente gentis, e não queriam, apesar de todas as exortações das mamães e das governantas, parecer-se com as pessoas grandes. Num piscar de olho desmontaram toda a árvore de Natal, e conseguiram quebrar a metade dos brinquedos antes mesmo de saber a quem eram destinados. Achei particularmente engraçado um menino de olhos pretos e cabelos frisados que à viva força me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais que todos, atraía-me a atenção sua irmã, menina de onze anos, um amor de criança, meiga, cismativa, pálida, com grandes olhos sonhadores à flor do rosto. Parecia

que os amiguinhos a tinham ofendido, pois veio ao salão onde eu estava sentado e, a um cantinho. pôs-se a brincar com as suas bonecas. Os convidados apontavam, com respeito, um rico negociante, pai da menina, e alguém observou, cochichando, que ela já tinha trezentos mil rublos reservados como dote. Voltei-me para ver quem se interessava por esses pormenores, e o meu olhar caiu sobre Julião Mastakovitch o qual, de mãos cruzadas atrás das costas e inclinando a cabeça para um lado, parecia acompanhar com particular atenção o mexerico de alguns senhores. Pouco depois, não pude furtar-me a admirar a sabedoria dos anfitriões na distribuição dos brindes às crianças. A menina que já tinha seus trezentos mil rublos de dote ganhou uma boneca suntuosíssima.

Desde então os presentes foram diminuindo de valor, de acordo com a diminuição da importância dos pais daquelas crianças felizes. Afinal, a última’ um menino de dez anos, magrinho, baixinho, sardento e ruivo, ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza, Das lágrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e até sem vinhetas. Filho da governanta dos meninos da casa, uma pobre viúva, era um pequeno muitíssimo encolhido e tímido, metido num pobre paletozinho de nanquim. Recebido o seu livrinho, andou muito tempo à volta dos brinquedos dos outros. Tinha uma vontade imensa de brincar com as outras crianças, mas não se atrevia; claro, já sabia e compreendia a sua situação.

Gosto muito de observar crianças. São sobremodo curiosas as suas primeiras manifestações independentes na vida. Notei, pois, que o menino ruivo se deixava seduzir pelos brinquedos dos outros, sobretudo pelo teatro, em que ele se empenhava para representar um papel qualquer, a ponto de aviltar-se. Pegou a sorrir para os outros, a cortejá-los, deu a sua maçã a um pequeno gordo que já tinha o lenço cheio de presentes. e até se ofereceu para carregar outro, só para que não o afastassem do teatro. No entanto, poucos minutos após um rapazinho arrogante deu-lhe uma boa surra. o ruivinho nem teve coragem de chorar. Logo apareceu sua mãe, a governanta, e ordenou-lhe não se intrometesse nos brinquedos alheios. O menino retirou-se para o salão onde estava a menina bonita. Esta o deixou aproximar-se, e as duas crianças entraram a enfeitar a suntuosa boneca.

Fazia já meia hora que eu estava sentado no caramanchão de hera, e quase adormecera ao zunzum da conversa entre o ruivinho e a menina dos trezentos mil rublos de dote, que se entretinham a respeito da boneca, quando de repente vi entrar no salão Julião Mastakovitch. Aproveitando a distração dos presentes com uma briga surgida entre as crianças, saíra do salão principal sem fazer barulho.

Notara eu, poucos minutos antes, que ele mantinha animada palestra com o pai da futura noiva rica, a quem mal acabara de conhecer, explicando-lhe as vantagens de qualquer emprego público sobre os demais. Parou à porta, tomado de hesitação, e parecia calcular alguma coisa nas pontas dos dedos.

- Trezentos. . . trezentos – murmurava.- Onze.. . doze.. . treze… até dezesseis, são cinco anos… Façamos de conta que sejam quatro por cento, são doze… cinco vezes doze, sessenta; estes sessenta… bem, calculados por alto, ao cabo de cinco anos serão quatrocentos. Está certo… Mas naturalmente o malandro não os terá colocado a quatro por cento! Talvez receba oito ou até dez por cento. Suponhamos que sejam quinhentos, no mínimo, sim, quinhentos mil, na certa. .. o excedente gasta-se no enxoval, hum…

Acabou a meditação, assoou-se, e, indo a sair do salão, súbito avistou a menina e estacou. Como eu estivesse assentado atrás dos vasos de flores, não me pôde ver. Tive a impressão de que o homem se achava muito excitado. Seria o cálculo que operava esse efeito sobre ele, ou outro motivo qualquer? Não sei. seja como for, o certo é que esfregava as mãos e não conseguia permanecer no mesmo lugar.

Quando a sua agitação chegou ao cúmulo, parou um instante e lançou um segundo olhar, muito resoluto, à futura noiva. Quis aproximar-se dela, mas primeiro olhou em redor. Depois, como quem tem sentimentos criminosos, aproximou-se da criança nas pontas dos pés. Com um sorrisinho nos lábios, inclinou-se para ela e beijou-a na testa. A menina, não esperando a agressão, gritou assustada.

- Que é que você está fazendo aqui, bela menina?;perguntou ele em voz baixa.

E, olhando em torno de si, deu-lhe uma palmadinha no rosto.

- Estamos brincando…

- Com ele? – disse Julião Mastakovitch fitando o menino de esguelha.

E logo acrescentou:

- Escuta, meu amigo, por que não vais para o salão?

O menino fitava-o sem falar, de olhos arregalados. Julião Mastalovitch olhou de novo em redor e aproximou-se outra vez da pequena:

- Que é que você tem aí bela menina? Uma bonequinha?- Uma bonequinha – respondeu a criança de cara fechada, cabisbaixa.

- Uma bonequinha… Mas você sabe, gentil menina, de que é feita a bonequinha?

- Não sei… – cochichou a pequena, abaixando ainda mais a cabeça.

- De trapos, minha alma… Mas tu, meu filho, deverias ir para o salão brincar com os teus camaradas, – disse Julião Mastakovitch encarando o menino com severidade.

As duas crianças franziram a testa e agarraram-se pela mão. Não queriam separar-se.

- Sabe você por que lhe deram essa bonequinha? – perguntou Julião Mastakovitch baixando cada vez mais a voz.

- Não.

- Porque você é uma criança boa e se comportou bem a semana toda.

Perturbado a mais não poder, Julião Mastakovitch lançou mais uma vez um olhar em roda, e baixou a voz de modo que a sua pergunta, formulada em tom impaciente e embargada pela emoção, saiu quase imperceptível:

- Diga-me, gentil menina: você gostará de mim se eu fizer uma visita a seus pais?

Havendo proferido tais palavras, Julião Mastakovitch quis beijar a pequena mais uma vez; mas o menino, vendo-a prestes a romper no choro, puxou-a pela mão e, compadecido, começou, ele próprio, a choramingar.

Dessa vez Julião Mastakovitch aborreceu-se deveras.

- Vai-te embora – disse ao menino – Vai para a sala brincar com os teus camaradas.

- Não vá, não – protestou a menina. – Você é que deve ir-se embora. Deixe-o aqui, deixe-o – disse quase soluçando.

Alguém fez barulho à porta. Assustado, Julião Mastakovitch ergueu no mesmo instante o corpo majestoso. O menino ruivo, porém, assustou-se ainda mais do que ele, largou a mão da menina e, devagarinho, roçando a parede, caminhou do salão à sala de jantar. Para não despertar suspeitas, Julião Mastakovitch também passou à sala de jantar. Estava vermelho feito uma lagosta e, mirando-se ao espelho, parecia até envergonhado de si mesmo, talvez arrependido da sua sofreguidão. Teria sido o cálculo feito na ponta dos dedos que o arrebatara a ponto de inspirar-lhe, apesar de toda a sua seriedade e gravidade, um procedimento de criança? Aproximava-se de chofre do seu objetivo, embora este não viesse a tornar-se um objetivo real antes de cinco anos, no mínimo.

Acompanhei o respeitável cavalheiro a sala de jantar, e ali testemunhei um espetáculo curioso. Rubro de raiva e despeito, Julião Mastakovitch perseguia o menino ruivo, o qual, recuando cada vez mais, já não sabia para onde correr:

- Sai daqui! Que diabo vens fazer aqui, velhaco? Vieste roubar frutas, hem? Vieste? Fora daqui, patife! Vai, fedelho, procura os teus camaradas!

Espantado, o pequeno recorreu a um expediente extremo: foi esconder-se debaixo da mesa. Então o seu perseguidor, no auge da excitação, puxou do bolso o grande lenço de batista e, brandindo-o, procurou enxotar o menino do seu esconderijo.

Este se encolhia caladinho, sem se mexer. Cumpre observar que Julião Mastakovitch era um tanto gordo: rapaz bem nutrido, corado, barrigudo, de pernas robustas, – em uma palavra, como se costuma dizer, redondo e forte como uma noz.

Suava, enrubescia, arfava terrivelmente. Estava exasperado por um sentimento de indignação e, quem sabe, de ciúme. Não pude conter uma gargalhada. Julião Mastakovitch virou-se e, a despeito de toda a sua importância, ficou mortalmente acanhado. Nesse instante, na porta oposta, apareceu o dono da casa. O ruivinho saiu logo do esconderijo e pôs-se a limpar os joelhos e os cotovelos. Julião Mastakovitch, com um gesto rápido, levou ao nariz o lenço que tinha na mão, seguro por uma das extremidades.

O dono da casa fitava-nos aos três, perplexo, mas, como homem que conhece a vida e a considera pelo lado sério, resolveu aproveitar a circunstância de encontrar-se quase a sós com o seu hóspede.

- É este o menino – disse indicando o ruivinho – que tive a honra de lhe recomendar…

- É? – respondeu Julião Mastakovitch, que ainda não voltara inteiramente a si.

- É filho da governanta de meus filhos – prosseguiu o dono da casa em tom de solicitação -, uma senhora pobre, viúva de um funcionário honesto; portanto, Julião Mastakovitch… se for possível. . .

- Mas não é;exclamou sem demora Julião Mastakovitch. – Perdoe-me, Filipe Alexeievitch, é totalmente impossível. Pedi informações… No momento não há vaga, e, ainda que houvesse, já se tem dez candidatos, cada um mais qualificado que este..

- Sinto muito… muitíssimo..

- É pena – disse o dono da casa. – É um menino bonzinho, modesto . . .

- Pelo que vejo, é um grandíssimo vadio, – estourou Julião Mastakovitch, com uma careta histérica. – Sai daí, menino. Que é que tu queres aí? Vai brincar com os teus camaradas; disse ainda, voltando-se para o ruivinho.

Não conseguindo mais conter-se, olhou para mim de soslaio. Por minha vez, não pude deixar de lhe rir deliberadamente nas barbas. Ele desviou de mim os olhos, e em voz bem alta perguntou ao dono da casa quem era aquele rapaz esquisito.

Saíram os dois da sala cochichando. Vi que Julião Mastakovitch, ouvindo as explicações de seu hospedeiro, abanava a cabeça, meio desconfiado.

Ri a bom rir com os meus botões, e voltei ao salão. Rodeado de mamães, de papais e dos donos da casa, o grande homem explicava alguma coisa com muito calor a uma senhora a quem acabavam de apresentá-lo. Esta segurava pela mão a menina com quem, dez minutos antes, Julião Mastakovitch representara a sua cena no pequeno salão. Agora ele estava-se derramando em extáticos elogios à beleza, aos talentos, à graça e à boa educação da gentil menina. Manifestamente engodava a mamãezinha, que o escutava quase com lágrimas de enlevo. Os lábios do pai sorriam. o dono da casa alegrava-se com essas alegres efusões. Os próprios convidados tomavam parte no júbilo; até os brinquedos das crianças foram suspensos para não se perturbar a conversa. Era uma atmosfera quase religiosa.

Logo depois, ouvi a mãe da interessante pequena, comovida até o fundo da alma pedir a Julião Mastakovitch, com expressões escolhidas, que lhe desse a subida honra de distinguir-lhe a casa com sua preciosa visita, e ele aceitou o convite com entusiasmo; enfim, ouvi os demais convidados, no momento da de despedida, expandirem-se, como o exigiam as conveniências, em louvores comovidos ao rico negociante, a sua mulher e a sua filha, e principalmente a Julião Mastakovitch.

- É casado esse cavalheiro? – perguntei em voz quase alta a um conhecido que estava mais perto dele.

Julião Mastakovitch enviou-me um olhar indagador e feroz.

- Não – disse-me o meu conhecido, profundamente penalizado com a leviandade que eu de propósito cometera.

Passava eu, há pouco tempo. em frente à igreja de ***, quando um grande ajuntamento me despertou a atenção. Em redor falava-se de um casamento. O dia estava nublado, começava a chuviscar; entrei na igreja abrindo caminho através da multidão. Logo avistei o noivo. Era um rapaz baixo, gordo, bem nutrido, de ventre ponderável, muito enfeitado, que corria para todos os lados, se agitava sem parar, dava ordens. Enfim, levantou-se um murmúrio de vozes anunciando a chegada da noiva. Fendi a turba de curiosos e vi uma jovem de admirável beleza, para quem a primavera apenas começava. Mas estava pálida e parecia triste a linda noiva.

Olhava distraída e tinha os olhos vermelhos, o que me deu impressão de lágrimas recentes. A severidade clássica de suas feições emprestava-lhe à beleza uma expressão algo solene. Através daquela severidade, daquela gravidade, de toda aquela tristeza, transpareciam os traços de uma criança inocente, algo de incrivelmente ingênuo, juvenil e ainda não formado, que parecia, sem palavras, implorar piedade.

Ouvi observar que ela mal acabava de completar dezesseis anos. Examinando atento o noivo, nele reconheci Julião Mastakovitch, que eu não via desde cinco anos.

Olhei para ela… Meu Deus! Fendi a multidão outra vez para sair da igreja o mais breve possível. Ainda ouvi um espectador dizer que a noiva era rica, que tinha quinhentos mil rublos de dote… e não sei mais quanto para o enxoval.

- Então o cálculo era justo; disse comigo.

- E saí para a rua.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Kaguya Hime

Há muito, muito tempo, existia um velhinho e uma velhinha, que viviam juntos numa casa no meio da floresta. Eles eram muito pobres e solitários, pois não tinham filhos para criar. O velhinho era conhecido pelo nome de Cortador de Bambus, pois, todos os dias, ele saía cedo para cortar bambus na floresta. Os dois faziam cestas e chapéus para vender e ganhar algum dinheiro.

Um belo dia, enquanto estava na floresta, o velhinho avistou um broto de bambu, que brilhava, com uma luz muito intensa. Ele ficou espantado, pois, em anos e anos de trabalho, nunca havia visto algo como aquilo. Muito curioso, ele cortou o bambu e mal pôde acreditar no que viu. “Uma menina, uma menina! Tão pequena e tão linda, só pode ser um presente de Deus!”.

Ele levou a pequena menina na palma de uma de suas mãos para casa. Ao ver a menina, a velhinha também ficou muito contente e eles resolveram que o nome dela seria Kaguya Hime (Princesa Radiante).

A partir daquele dia, o velhinho passou a encontrar outros bambus brilhantes na floresta. Mas, ao invés de uma menina, eles continham moedas de ouro. Assim, a vida do casal melhorou e eles não precisavam mais produzir cestos para sobreviver. Eles creditaram o milagre à chegada de sua linda filha.

Kaguya Hime crescia muito rápido e a cada dia parecia mais bonita. Em apenas três meses, ela já tinha o tamanho de uma criança de oito anos. Ninguém poderia acreditar que uma pessoa tão bonita pertencesse a este mundo.

Logo os comentários sobre a beleza da Kaguya Hime se espalharam e vinham jovens de todos os cantos do país para conhecê-la. Todos queriam se casar com Kaguya, mas ela não queria se casar com ninguém. “Quero ficar ao lado de vocês dois”, dizia a jovem para seus pais. Mas cinco jovens nobres, de posições importantes, foram mais persistentes. Eles acamparam em frente à casa de Kaguya Hime e pediam uma chance a ela.

Preocupado, o velhinho chamou Kaguya e disse: “Minha filha, eu gostaria muito de ter você sempre por perto, mas acho justo que se case. Escolha um dentre os cinco rapazes que estão acampados aqui”. Assim, a linda jovem decidiu. “Eu me casarei com aquele que me trouxer o objeto mágico que pedirei”

Um colar feito com os olhos de um dragão, um vaso feito com pedras dos deuses que nunca se quebra, um manto de pele de animal forrado de ouro, um galho que faz crescer pedras preciosas, um leque que brilha como a luz do sol e uma concha que a andorinha põe junto com seus ovos. Estes foram os objetos que Kaguya Hime pediu.

O velhinho levou os pedidos de Kaguya aos pretendentes acampados. Ele sabia que seria muito difícil conseguirem obter tais objetos. Qual não foi sua surpresa quando, ao final de alguns meses, todos os pretendentes trouxeram os presentes para Kaguya. Mas, quando eles foram obrigados a entregá-los a jovem, todos admitiram que os presentes eram falsos, pois conseguir os verdadeiros era uma missão muito difícil. E assim, nenhum deles obteve êxito.

Quatro primaveras haviam se passado desde que Kaguya fora encontrada no broto de bambu. Mas ela ficava mais triste a cada dia. Noite após noite, Kaguya Hime olhava para a lua, suspirando. Preocupado, o velhinho um dia perguntou: “Por que está tão triste minha filha?”. “Eu gostaria de ficar aqui para sempre, mas logo devo retornar”, disse a jovem.” “Retornar, mas para onde? O seu lugar é aqui conosco, nunca deixaremos você partir”, disse o pai aflito.” “Este não é o meu reino, eu sou uma princesa de Reino da Lua e, na próxima lua cheia, eles virão me buscar”.

Muito assustados com a reveladora confissão de Kaguya Hime, os velhinhos decidiram pedir ajuda ao príncipe do reino onde viviam. O príncipe ajudou e enviou muitos guardas para vigiarem a casa do casal. Um verdadeiro exército foi formado.

No dia seguinte, a temida noite de lua cheia chegou. A casa estava tão vigiada que parecia impossível alguém conseguir levar Kaguya Hime. De repente, uma enorme luz surgiu no céu, como se milhares luas estivessem presentes ao mesmo tempo.

A luz era tão intensa que ninguém conseguiu enxergar a carruagem que descia, guiada por um grande cavalo alado e muitas pessoas bem vestidas. Depois de algum tempo, quando a luz diminuiu, a carruagem já estava voando, em direção à lua. Kaguya Hime não estava mais presente, ela fora junto com a comitiva.

Os velhinhos ficaram muito tristes, inconformados. Voltaram ao quarto de Kaguya e encontraram um potinho, presente da filha querida. Ela havia deixado um pó mágico, que garantiria a vida eterna para os dois.

Mas, sem sua filha amada, os velhinhos não queriam viver para sempre. Eles recolheram todos os pertences de Kaguya e levaram para o monte mais alto do Japão. Lá, queimaram tudo, junto com o pó mágico deixado pela jovem. Uma fumacinha branca subiu ao céu naquele dia.

A montanha era o Monte Fuji. Dizem que até hoje é possível ver a fumacinha subindo e subindo.

Bogorotire, o Homem Chuva

Begorotire era um índio feliz. Certo dia, porém, havendo sido injustiçado na divisão da caça, ficou furioso, decidindo que sairia à procura de outro lugar para viver. Cortou os cabelos da esposa e da filha, pintando toda a família com uma tintura preta que havia retirado do fruto do jenipapo. Pegou um pedaço de madeira pesada e resistente, fazendo a primeira borduna Caiapó, com o cabo trançado em preto e a ponta tingida com sangue da caça. Chegou então ao alto de uma montanha, levando sua arma, e começou a gritar. Seus gritos soaram como fortes trovões. Girou fortemente a borduna no ar e de suas pontas saíram relâmpagos. Em meio ao barulho e às luzes, Begorotire subiu aos céus. Os índios assustados atiraram suas flechas, mas nada conseguiu impedir que o índio desaparecesse no firmamento.

As nuvens, também assustadas, derramaram chuva. Por isso Begorotire tornou-se o homem chuva. Tempos depois, levou toda a família para o céu, onde nada lhes faltava, e de lá muito fez para ajudar os que na terra ficaram. Juntos sementes de suas fartas roças, secou-as sobre o girau, entregando-as a uma filha para trazê-las. A índia desceu dentro de uma cabaça enorme amarrada a uma longa corda, tecida com as próprias ramas do vegetal. Caminhando pela floresta, um jovem encontrou a cabaça, amarrou-a com os cipós e pedaços de madeira e, com ajuda dos amigos levou-a para a aldeia. A mãe, abrindo a cabaça, encontrou a índia, a filha da chuva, que estava magra e com longos cabelos, por lá haver permanecido muito tempo.

A jovem foi retirada e alimentada, e teve seus cabelos aparados. Ao ser indagada, a filha da chuva explicou por que viera, entregando-lhes as sementes enviadas por seu pai e deixando a todos muito felizes. O jovem que encontrou a cabaça casou-se com a moça, passando esta a morar novamente na terra. Com o tempo, resolveu visitar os pais. Pediu ao esposo vergasse um pé de Pindaíba, trazendo a copa até o chão. Sentou-se sobre ela e, ao soltarem a árvore, a índia foi lançada ao céu. Ao retornar, trouxe consigo toda a família e cestos repletos de bananas e outros frutos silvestres. Begorotire ensinou a todos como cultivar as sementes e cuidar das roças, regressando depois ao seu novo lar. Ate hoje, quando as plantas necessitam de água, o homem chuva provoca trovões, fazendo-a cair sobre as roças para mantê-las sempre verdes e fartas.

O Burro Juiz

Disputava a gralha com o sabiá, afirmando que a sua voz valia a dele. Como as outras aves rissem daquela pretensão, a bulhenta matraca de penas, furiosa, disse:
— Nada de brincadeiras. Isto é uma questão muito séria, que deve ser decidida por um juiz. Canta o sabiá, canto eu, e a sentença do julgador decidirá quem é o melhor artista. Topam?— Topamos! piaram as aves. Mas quem servirá de juiz?
Estavam a debater este ponto, quando zurrou um burro.
— Nem de encomenda! exclamou a gralha. Está lá um juiz de primeiríssima para julgamento de música, pois nenhum animal possui maiores orelhas. Convidê-mo-lo.Aceitou o burro o juizado e veio postar-se no centro da roda.
— Vamos lá, comecem! ordenou ele.
O sabiá deu um pulinho, abriu o bico e cantou. Cantou como só cantam sabiás, garganteando os trinos mais melodiosos e límpidos. Uma pura maravilha, que deixou mergulhado em êxtase o auditório em peso.
— Agora eu! disse a gralha, dando um passo à frente.
E abrindo a bicanca matraqueou uma grita de romper os ouvidos aos próprios surdos.Terminada a justa, o meritíssimo juiz deu a sentença:
— Dou ganho de causa à excelentíssima senhora dona Gralha, porque canta muito mais forte que mestre sabiá. (*)

Moral da História:
*Quem burro nasce, togado ou não, burro morre.

Nem a Rosa, nem o Cravo…

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u’a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.

Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.

Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo – desde o crepúsculo aos olhos da amada – sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

terça-feira, novembro 23, 2010

Os Ingredientes do bolo

A filha dizia à mãe como tudo ia errado. Ela não se saíra bem na prova de Matemática, o namorado resolveu terminar com ela e a sua melhor amiga estava de mudança para outra cidade.

Em horas de amargura, a mãe sabia que poderia agradar a filha preparando-lhe um bolo. Naquele momento não foi diferente. Abraçou a filha e levou-a à cozinha, conseguindo arrancar da moça um sorriso sincero.

Logo que a mãe separou os utensílios e ingredientes que usaria e os colocou na mesa, perguntou à filha: "- Querida, quer um pedaço de bolo?".

A filha respondeu: "- Mas já, mamãe? É claro que quero. Seus bolos são deliciosos..."

"- Então está bem", respondeu a mãe, "Beba um pouco desse óleo de cozinha!"

Assustada, a moça respondeu: "- Credo, mãe!"

"- Que tal então comer uns ovos crus, filha?"

"- Que nojo, mãe!"

"- Quer então um pouquinho de farinha de trigo ou bicarbonato de sódio?"

"- Mãe, isso não presta!"

A Mãe então respondeu: "- É verdade, todas essas coisas parecem ruins sozinhas, mas quando as colocamos juntas, na medida certa... Elas fazem um bolo delicioso!"

Deus trabalha do mesmo jeito. Às vezes a gente se pergunta por que Ele quis que nós passássemos por momentos difíceis, mas Deus sabe que quando Ele põe todas essas coisas na ordem exata, elas sempre nos farão bem.

A gente só precisa confiar n'Ele e todas essas coisas ruins se tornarão algo fantástico!

Deus é louco por você. Ele te manda flores em todas as Primaveras... O nascer o Sol todas as manhãs... E sempre que você quiser conversar, Ele vai te ouvir!

Ele poderia viver em qualquer lugar do universo, mas Ele escolheu o seu coração!

O Homem Elefante

Invejo as pessoas de memória fraca. E desconfio que elas sejam mais felizes.

Antigamente, minha memória avantajada era motivo de orgulho. Hoje é um pouco maldição.

Pode ter sido alguma pancada na cabeça. Antes dos três anos de idade, não lembro de absolutamente nada. Parece-me normal.

O que me parece pouco normal é lembrar, dos três anos em diante, até da posição onde ficavam os brinquedos do primeiro colégio onde estudei, o Abelhinha, em Santarém, no Pará.

E de todos os outros. E de todos os amigos. E dos sonhos deles, das frustrações e das alegrias também. E de tantos detalhes de diálogos, atividades, argumentos e até paisagens de um monte de gente que, às vezes, só vi uma vez na vida.

Os anos passam e a gente não esquece de (quase) ninguém, querendo saber por onde estão e por que deixamos eles sumirem do mapa sem deixar um telefone, um endereço, um pombo correio.

A gente se muda pela décima quinta vez na vida e, em vez de malas com roupas, objetos e compras, trazemos apenas o peso da lembrança de pessoas interessantes e bons amigos que ficam para trás.

Amaldiçoados sejam eles.

Porque nós já somos. E nunca vamos conseguir explicar isso para nossas mulheres, sejam elas esposas, amantes, ex-namoradas, amores platônicos, paixões mal resolvidas, amizades coloridas.

Se a gente lembra até dos sonhos que sonhávamos quando criança, é lógico que lembramos de tudo sobre elas.

Cada detalhe, cada curva, cada sorriso, cada cheiro.

Passa uma década, duas, o mundo acaba e ainda parece que foi ontem.

E com tantas memórias pujantes como se fossem o presente, é inútil esperar que elas compreendam quando a gente joga fora um presente.

Presente de aniversário, que seja.

Ou quando não guardamos as fotos daquela viagem só de nós dois. Quando jogamos fora aquela camisa que ela tanto gostava. Quando queimamos aqueles cartões do Garfield.

Quem tem memória de elefante, se desfaz de coisas assim não é para esquecer.

É para tentar, inutilmente, não lembrar a cada minuto o que a gente já lembra a cada dia. Mesmo sem querer.

sábado, novembro 13, 2010

Sobre Humilhação

Durante uma vida a gente é capaz de sentir de tudo, são inúmeras as sensações que nos invadem, e delas a arte igualmente já se serviu com fartura. Paixão, saudades, culpa, dor-de-cotovelo, remorso, excitação, otimismo, desejo – sabemos reconhecer cada uma destas alegrias e tristezas, não há muita novidade, já vivenciamos um pouco de cada coisa, e o que não foi vivenciado foi ao menos testemunhado através de filmes, novelas, letras de música.

Há um sentimento, no entanto, que não aparece muito, não protagoniza cenas de cinema nem vira versos com freqüência, e quando a gente sente na própria pele, é como se fosse uma visita incômoda. De humilhação que falo.

Há muitas maneiras de uma pessoa se sentir humilhada. A mais comum é aquela em que alguém nos menospreza diretamente, nos reduz, nos coloca no nosso devido lugar - que lugar é este que não permite movimento, travessia?. Geralmente são opressões hierárquicas: patrão-empregado, professor-aluno, adulto-criança. Respeitamos a hierarquia, mas não engolimos a soberba alheia, e este tipo de humilhação só não causa maior estrago porque sabemos que ele é fruto da arrogância, e os arrogantes nada mais são do que pessoas com complexo de inferioridade. Humilham para não se sentirem humilhados.

Mas e quando a humilhação não é fruto da hierarquia, mas de algo muito maior e mais massacrante: o desconhecimento sobre nós mesmos? Tentamos superar uma dor antiga e não conseguimos. Procuramos ficar amigos de quem já amamos e caímos em velhas ciladas armadas pelo coração. Oferecemos nosso corpo e nosso carinho para quem já não precisa nem de um nem de outro. Motivos nobres, mas os resultados são vexatórios.

Nesses casos, não houve maldade, ninguém pretendeu nos desdenhar. Estivemos apenas enfrentando o desconhecido: nós mesmos, nossas fraquezas, nossas emoções mais escondidas, aquelas que julgávamos superadas, para sempre adormecidas, mas que de vez em quando acordam para, impiedosas, nos colocar em nosso devido lugar.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Tudo o que faço ou medito

Tudo o que faco ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada e' verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faco!
Minha alma e' lucida e rica,
E eu sou um mar de sargaco ---

Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Nao o sei e sei-o bem.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Contudo

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.
Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Tu Tens um Medo

Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

DA OBSERVAÇÃO

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Estou atrás do que fica atrás do pensamento

Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo. Gênero não me pega mais. Além do mais, a vida é curta demais para eu ler todo o grosso dicionário a fim de por acaso descobrir a palavra salvadora. Entender é sempre limitado. As coisas não precisam mais fazer sentido. Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. Porque no fundo a gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro.

terça-feira, novembro 09, 2010

Romântismo Retroiluminado

Meu ícone máximo de romantismo sempre foi o casal que divide livros na cabeceira da cama. De pijamão, luminárias de cada lado, folheando as páginas até o sono chegar.

Intermitentes, elas coçam nosso bucho peludo e nós a cutucamos com o pé ao escutar o primeiro ronco delas.

Claro que já tentamos imitar a bucólica cena. E claro que nunca funcionou.

Bons livros devem ser tratados como bons filmes. Você até pode interromper, desde que seja algo importante. E nada é tão importante a ponto de interromper mais de uma vez. Ou duas, se for o apocalipse.

Veja bem, quando estamos lendo, não queremos saber o que você está lendo. Conte depois. Na hora do almoço, no bar, amanhã quando acordar. Em qualquer outro horário.

Não pergunte se estamos com fome ou sede. Agradecemos o carinho e a ternura, mas é uma questão cartesiana: se a gente tem sede, a gente bebe. Se temos fome, vamos até a cozinha e voltamos com uma bolacha ou um pedaço de bife entre os dentes. Às vezes, rosnando.

Por tabela, é justo presumir que, se estamos deitados tentando ler, não estamos com fome e nem com sede.

Temos muito interesse no seu corpinho, nas suas ideias e opiniões sobre o mundo, a sociedade, o big brother brasil, a física quântica e a conspiração do governo americano sobre a existência de vida alienígena. Só não exatamente agora.

Veja bem, nenhuma conclusão cientificamente comprovada sobre a vizinha sirigaita é tão importante que não possa esperar até o café da manhã. De amanhã. A gente até gosta de falar como foi nosso dia de trabalho e os planos etílicos para o fim de semana, mas nos perdoe, pois infelizmente somos seres muito limitados. Não conseguimos falar e ler ao mesmo tempo. Peço desculpas em nome da espécie. É um dos nossos inúmeros defeitos de fábrica.

Evidente, temos nossa parcela de culpa. Livros não trazem fotos ou imagens coloridas por um propósito muito claro: concentração. Logo, é uma disputa inglória se você está aqui ao lado com uma das centenas de suas revistas femininas com fotos de modelos de biquini, decotes e vestidinhos floridos em poses pouco literárias. Assim, nossa últi-ma gota de romantismo é página virada.

Uma outra opção (crianças, não tentem fazer isso em casa) é o que costumo chamar de leitura 69.

É isso mesmo que você pensou. Mas sempre há o risco de não funcionar, porque ela pode não alcançar o seu bucho peludo e ficar coçando outra coisa. Era uma vez uma noite de leitura.

Se a gente insinuar que você pode ter DDA (distúrbio do déficit de atenção) por não conseguir ler meia hora com a matraca fechada, bem capaz de irmos dormir no sofá ou você jogar o livro pela janela. Quando isso acontece, impera a Lei de Murphy: sempre é um livro que você não leu ainda.

Sabe o que é, a exemplo de tantas pessoas que passaram pelo Laserdisc e viram o videocassete (VCR) nascer, também sofremos lavagem cerebral dos filmes americanos de uma época onde não havia internet, dois empregos, expedientes prolongados, con-tratos de pessoa jurídica, participação nos lucros e... DDA generalizado. Fora a preocupação constante com a sua programação neuro-linguística.

A gente conseguia ler em paz e achava bacana os casais gringos do cinema lendo com óculos fundo de garrafa e dividindo um abajur retrô. Também sempre achei bacana quando os gringos puxavam do congelador um pacote e jogavam dentro do microondas com embalagem e tudo. Por aqui, não havia a cultura de comida congelada, aliás, sequer existia microondas.

Do jeito que as coisas estão hoje, talvez o maior romântico da atualidade seja o Steve Jobs. Ou seja lá quem tiver inventado o notebook com aquele teclado retroiluminado. Sem ele, nossa vida de leitura (e convivência) noturna seria bem mais difícil.

Com esse pequeno milagre chamado teclado retroiluminado, a gente não precisa mais de abajur enquanto elas dormem e balbuciam sonâmbulas sobre a luz acesa.

Podemos ficar inertes no escuro, digitando estes parcos rabiscos no silêncio da madrugada, sem atrapalhar ninguém, sem precisar de energia elétrica, apenas lendo uma coleção inteira de livros em PDF e escrevendo anotações de vendaval.

Não é a mesma sensação do livro, você me diz. De fato. Mas é o mais próximo que vamos conseguir chegar daquele romantismo de cabeceira. De vale-brinde, agora vocês não precisam mais reclamar que, ao primeiro ronco, a gente aproveita para fugir da cama e ir trabalhar na sala...

Até porque os meios mudam, mas as contas a pagar permanecem.

O impulso

Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se trata de intuição, mas de simples infantilidade. Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. Há um perigo: se reflito demais, deixo de agir. E muitas vezes prova-se depois que eu deveria ter agido. Estou num impasse. Quero melhorar e não sei como. Sob o impacto de um impulso, já fiz bem a algumas pessoas. E, às vezes, ter sido impulsiva me machuca muito. E mais: Nem sempre os meus impulsos são de boa origem. Vêm, por exemplo, da cólera. Essa cólera às vezes deveria ser desprezada; outras, como me disse uma amiga a meu respeito, são: cólera sagrada. Às vezes minha bondade é fraqueza, às vezes ela é benéfica a alguém ou a mim mesma. Às vezes restringir o impulso me anula e me deprime, às vezes restringi-lo dá-me uma sensação de força interna. Que farei então? Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.

segunda-feira, novembro 08, 2010

As Vantagens de Ser Bobo

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia. O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Trabalho em Equipe

História usada na MERCER HUMAN RESOURCES, a maior do mundo na área de RH, em reuniões sobre 'trabalho em Equipe'.


'Um rato, olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote.
Pensou logo no tipo de comida que poderia haver ali.
Ao descobrir que era uma ratoeira ficou aterrorizado. Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos:'

- Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira na casa! ''.
'A galinha, disse: ' Desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.'
O rato foi até o porco e lhe disse: 'Há uma ratoeira na casa, uma ratoeira!'.
'Desculpe-me Sr. Rato, disse o porco, mas não há nada que eu possa fazer,a não ser rezar. Fique tranqüilo que o senhor será lembrado nas minhas preces.'
O rato dirigiu-se então à vaca. Ela lhe disse: '-O que Sr. Rato? Uma ratoeira? Por acaso estou em perigo? Acho que não !'
Então o rato voltou para a casa, cabisbaixo e abatido, para encarar a ratoeira do fazendeiro.
Naquela noite ouviu-se um barulho, como o de uma ratoeira pegando sua vítima.
A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia pegado.
No escuro, ela não viu que a ratoeira havia pegado à cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher...
O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre.
Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja de galinha.
O fazendeiro pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal.
Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos vieram visitá-la.
Para alimentá-los o fazendeiro matou o porco.
A mulher não melhorou e acabou morrendo.
Muita gente veio para o funeral.
O fazendeiro então sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.
Na próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre-se que, quando há uma ratoeira na casa, toda a fazenda corre risco.

Estou Cansado

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Não me prendo a nada que me defina.

Sou companhia, mas posso ser solidão.

Tranqüilidade e inconstância, pedra e coração.

Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e sono.

Música alta e silêncio.

Serei o que você quiser, mas só quando eu quiser.

Não me limito, não sou cruel comigo!

Serei sempre apego pelo que vale a pena e desapego pelo que não quer valer…

Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. ou toca, ou não toca.

Por que as pessoas entram na sua vida?

Pessoas entram na sua vida por uma "Razão", uma "Estação" ou uma "Vida Inteira". Quando você percebe qual deles é, você vai saber o que fazer por cada pessoa.

Quando alguém está em sua vida por uma "Razão"... é, geralmente, para suprir uma necessidade que você demonstrou. Elas vêm para auxiliá-lo numa dificuldade, te fornecer orientação e apoio, ajudá-lo física, emocional ou espiritualmente. Elas poderão parecer como uma dádiva de Deus, e são! Elas estão lá pela razão que você precisa que eles estejam lá. Então, sem nenhuma atitude errada de sua parte, ou em uma hora inconveniente, esta pessoa vai dizer ou fazer alguma coisa para levar essa relação a um fim. Ás vezes, essas pessoas morrem. Ás vezes, eles simplesmente se vão. Ás vezes, eles agem e te forçam a tomar uma posição. O que devemos entender é que nossas necessidades foram atendidas, nossos desejos preenchidos e o trabalho delas, feito. As suas orações foram atendidas. E agora é tempo de ir.

Quando pessoas entram em nossas vidas por uma "Estação", é porque chegou sua vez de dividir, crescer e aprender. Elas trazem para você a experiência da paz, ou fazem você rir. Elas poderão ensiná-lo algo que você nunca fez. Elas, geralmente, te dão uma quantidade enorme de prazer... Acredite! É real! Mas somente por uma "Estação".

Relacionamentos de uma "Vida Inteira" te ensinam lições para a vida inteira: coisas que você deve construir para ter uma formação emocional sólida. Sua tarefa é aceitar a lição, amar a pessoa, e colocar o que você aprendeu em uso em todos os outros relacionamentos e áreas de sua vida. É dito que o amor é cego, mas a amizade é clarividente. Obrigado por ser parte da minha vida.

Pare aqui e simplesmente SORRIA.

"Trabalhe como se você não precisasse do dinheiro,
Ame como se você nunca tivesse sido magoado, e dance como
se ninguém estivesse te observando."

"O maior risco da vida é não fazer NADA."

quarta-feira, novembro 03, 2010

Afinal, quem é você?

Existem quatro ingredientes básicos que formam a personalidade: origens e educação; obrigações diárias; interação com o mundo; sonhos e anseios. Como equilibrar essa mistura? Descubra nas próximas páginas

por Alessandro Meiguins


Como seria uma vida sem espelhos? Sem registros de nossa própria aparência? Sem imagens, desenhos ou fotografi as de nós mesmos? Sem que soubéssemos o contorno do nosso perfil, a proporção da boca diante das sobrancelhas e nariz? O comprimento das orelhas, a coloração dos olhos? Veríamos todo o mundo, mas não nos veríamos.

O que seríamos, sem nos vermos?

Ou, pelo contrário: como seria uma vida cheia de espelhos? Se só pudéssemos ver nossa face em todas as outras faces? Muitos e muitos registros de nós, da nossa expressão? Tudo que olhássemos seria mudado por nosso modo de ver a vida, pelo jeito de falarmos, pelo jeito de ouvirmos? Não veríamos o mundo, apenas a nós mesmos.

O que seríamos, só nos enxergando e mais nada?

As hipóteses acima não são apenas suposições delirantes e distantes, como parecem. Elas representam realidades concretas do nosso universo. Relembre, você já pode ter agido assim (eu admito que já o fiz, e faço). No primeiro caso, como e quando isso se daria? Nas vezes em que mal nos enxergamos, ou pouco nos conhecemos para delimitar com certeza nossos reais dons e vontades. Fases sem nitidez, clareza, quando as obrigações cotidianas parecem tomar conta de tudo... Na outra banda, há momentos em que só enxergamos o mundo – e nossas relações nele – conforme o que queremos, e distorcemos tudo a nosso bel-prazer. A realidade que se adapte!

Situações opostas, verdade, e nem sempre freqüentes, mas que mostram uma ínfima parte do imenso universo que forma a personalidade de cada um. Nela, essência, heranças, aspirações, desejos e sonhos se misturam a relações, máscaras, responsabilidades, dores, alegrias... No meio dessa salada completa do tamanho do (seu) mundo, está a resposta para a pergunta da reportagem que você irá ler nas próximas páginas. Uma pergunta que também ultrapassa toda e qualquer letra impressa.

Quem somos nós, afinal?

Genética de bamba!

Sem sombra de dúvida, ao chorar o bebê recebe tudo de que precisa. Leite quentinho, troca de roupa, balanço do chocalho, atenção, abrigo, amor. Basta chorar, ou pedir, e voilá, lá vem mamãe ou papai atender as necessidades. Aos poucos, inevitavelmente, esse cenário muda. O bebê se torna uma criança e começa a participar daquela outra vida além do berço, o mundo dos adultos. Tem hora para comer, para dormir, para brincar, para deixar de usar fraldas. Além disso, ela passa a reproduzir o que vê, o que ouve, o que compreende e apreende da vida familiar. Copia tudo, mesmo porque seus genes a ajudam nessa tarefa. Explicação: por muito tempo se definiu que a personalidade nascia na infância, nos primeiros sete anos de vida. Mas estudos recentes, de algo conhecido como genética comportamental, afirmam que desde o momento em que seus cromossomos X e Y determinam seu sexo, seu lindo olhar e seu jeito de gingar, eles também influenciam as características do seu “perfil de personalidade”, como relata o psicólogo americano Steven Pinker no livro Tábula Rasa. Bom humor seria hereditário, assim como ouvido musical ou aquela inclinação à leitura. Mas não é só isso, claro.

Somada aos genes, é nessa convivência familiar e na necessidade de interação que a personalidade embrionária dá seus primeiros passos. “Suco”, a criança diz, e às vezes trazem suco, às vezes não. Por que, ora bolas, só às vezes? E se gritar, vem? E se chorar? E se sorrir, ou beijar, ou abraçar? A criança testa os caminhos, percebe que alguns não funcionam. Até que compreende como fazer pontes com a realidade exterior – e como pedir um suco, uma bola e, incrível, que seu pai brinque com ela mesmo com aquela cara de cansado. Em outros momentos, a criança não entende nada, se assusta, fica com medo – e cria proteções, barreiras contra o mundo. Por que não podia rir alto naquela casa grande chamada de igreja? Por que ficar de castigo por subir na mesa e se pendurar no lustre? “Nesses momentos difíceis de relação com o mundo, montamos defesas para proteger e esconder as emoções. Nascem nossas máscaras”, diz a psicóloga e terapeuta corporal Maria das Graças Casarsa, especializada em Core Energetics, terapia focada em dissolver bloqueios emocionais utilizando o corpo como instrumento de diagnóstico.

Armadilhas internas

Mesmo com essa característica protetora, as máscaras são funcionais e nos ajudam a estabelecer formas de comunicação. Com elas, vestimos inúmeros códigos sociais. Nos adaptamos às regras de comportamento do ônibus escolar, do trânsito estafante, do vôo intercontinental. Registramos nossa identidade, usamos carteira com documentos, pagamos as contas (quase) em dia, conversamos com clientes, vendemos nosso peixe, enviamos e-mails, paqueramos, amamos, brigamos. “A personalidade com máscaras não tem um caráter negativo, pois essa estrutura apresenta o indivíduo, com seus dons e suas aspirações, ao ambiente social”, explica Elizabeth Zimmermann, presidente da Associação Junguiana do Brasil.

Mas no quesito “quem somos nós?” é preciso dizer que esses instrumentos da persona têm sua contra-indicação. Seriam um pouco intrometidos e surgiriam mesmo quando não fossem convidados para a cena. Para completar, durariam por toda a vida. Quer um exemplo? Esse é clássico. Lá está você levando aquela bronca da(o) esposa(o), mesmo quando você é que está com a razão. Em vez de retrucar, dialogar, debater, se encolhe, assustado, pois foi assim que você se safou quando levava um pito de igual porte da(o) sua (seu) mãe (pai), nos idos da infância. A máscara já não é mais útil, mas aparece mesmo assim. Imagine que isso aconteça muitas e muitas vezes, até o ponto – seja na idade que for – em que você cria uma imensa máscara, para tudo e para todos. Antes de qualquer agressão, melhor se defender, não? Ficar em uma bolha emocional, auto-isolante das fortes emoções do mundo. E incapaz de mostrar a si mesmo, tão automatizado que estaria. Como os peixes que são vendidos em feiras, nadando presos em sacos plásticos com água. E agora? É isso? Isolado e acabou? Talvez seja melhor abrir a couraça, não? “Quando começamos a sentir as amarras que algumas máscaras trazem, começa o processo de reconstrução de sua personalidade, de uma forma mais aberta às emoções. E começamos a expressar a nós mesmos de forma mais verdadeira”, diz Maria das Graças Casarsa.

Espelho, espelho meu

Mas como descobrimos essas tais amarras? Existe algum tipo de manual para achar nossas travas, nossos escudos? Na fala de todos os especialistas consultados, as dicas são simples. De certa forma, o espelho vai nos ajudar. A princípio, deixe de lado o que está no banheiro e use um tirado da sua imaginação. Quando não se sentir bem e sua relação consigo mesmo não estiver tão boa, reveja suas atitudes, como se estivesse vendo um filme. Como naquele dia em que, digamos, você queria tanto ter terminado o relatório, mas foi protelando o trabalho até ser tarde demais para fazê-lo durante o expediente. Levou o trabalho para casa, mas no meio do caminho encontrou uns amigos, parou e resolveu deixar para o outro dia, antes da primeira hora. Então a noite dá lugar a uma nova manhã, mas a cama estava daquele jeito, no ponto, e nada de você levantar cedo. Começa o expediente, e lá vai você duplamente atrasado inventar para a chefia que teve um problema em casa, mas que logo termina tudo. Nesse exemplo trivial, a máscara está nas mentiras que você mesmo se prega. E nas desculpas esfarrapadas que inventa para si e para os outros sobre seu desempenho profissional.

E, em se tratando dos outros, pode acreditar que suas relações podem ser de extrema valia para você se enxergar melhor. Sem exageros ou mansidão. Se todo mundo fala que você é organizado, talvez valha a pena dar crédito a isso. Você pode ser, sim, dessa forma. Mas a questão maior que envolve as máscaras é se você é organizado para os outros verem e falarem disso e você abrir sua cauda de pavão, ou se você é organizado de verdade. Aliás, tudo que faz parte do seu universo exterior vai, de um jeito ou de outro, refletir uma parte de você. No outro extremo das suposições, o carro bagunçado e sujo pode ter múltiplos significados. Um, você está sem dinheiro e tempo para lavar a máquina. Pronto, sem drama. Dois, você não liga para sujeira e é bagunçado por natureza. Ok, tudo certo. Três, você entra em crise com aquela bagunça, que parece dizer que toda sua vida está uma zoeira. Existem mais opções, claro. Anote a sua. E, quando possível, bata um papo com alguém que possa ouvi-lo com um pouco de isenção. Para mim, um diálogo desse tipo aconteceu de surpresa, mas foi importantíssimo. Conto no próximo parágrafo.

Em análise

Já passa de 12 anos que Marcelo conversa, sem parar, com pessoas de todos os tipos. Faz parte da sua rotina, e além de tudo é algo que lhe dá prazer. Escuta com paciência, anota os trechos mais importantes, espera a deixa correta e fala. Muito, por sinal. Sempre com o mesmo tom de voz, com olhar de amigo, gesticulando de forma animada. Afinal, ele é médico e está lá com os ouvidos atentos e a verve inspirada para ajudar, cuidar. Precisa ser franco o tempo todo, e assim o é com apenas uma exceção. Um assunto que ele menciona para poucos (“porque poucos entendem”, como ele diz), mas que percebe em todos: as pessoas se apegam às suas próprias aflições. E olhe que ele não está falando de doenças ou sintomas físicos, mas de um modo de viver a vida em desarmonia e criar repetidas vezes problemas e inquietudes. Foi isso que ele me mostrou, sobre mim mesmo. Estava lá na minha ficha, pude conferir, estupefato. Após oito anos de consultas, retornos, abandonos, freqüências e tratamentos, eu voltava ao consultório para repetir as queixas. Uma dor aqui, outra acolá, todas causadas pelo mesmo jeito de viver. Pelo jeito que criei ou, até, pelo jeito que eu sou – e isso é difícil de admitir.

Ao olhar suas anotações, cheias de frases que pontuaram minhas consultas, percebi que não havia remédio que pudesse melhorar minhas dores, a não ser eu mesmo. Mas por quais motivos criara um modus vivendi que me trazia preocupações, dores, ansiedade? Isso veio ao encontro de muitas leituras que fiz para esta reportagem, e a resposta me atingiu em cheio, dando nó nas entranhas. “Todos temos uma propensão a nos auto-enganar. Ela reside na capacidade que temos de sentir e de acreditar de boa-fé que somos o que não somos”, diz Eduardo Gianetti em Auto-engano. Ou, em outras palavras, podemos muitas vezes buscar mudanças e até o autoconhecimento, sem nunca arredar pé da estaca zero. Conhecer a si mesmo exigiria um pouco de isenção, para não dizer humildade, para ver nossos defeitos. E depois muita vontade para mudá-los. “Vontade para viver bem”, como disse o médico Marcelo Jovchelevich. Nesse momento, lembrei-me da teoria de uma pessoa que considero de bem com a vida, o precursor da ioga no Brasil, professor Hermógenes, que inventou o termo “egoesclerose”. Dessa forma ele classifica como “iludidas” as pessoas que se vêem muito acima do que são.

E isso é preciso ser dito, caro leitor. Se você vai pesquisar a si mesmo, pode ser que se dê conta de comportamentos e vícios emocionais que não lhe agradem. Eu com certeza não gostei de muitos insights que tive durante a pesquisa desse assunto. Tanta coisa nada bacana em mim, bem diferente do que eu projetava no espelho, do que via de cima do pedestal. A boa nova lhe falo pessoalmente, sem recorrer a experts: tropeçar nesses entraves me trouxe mais para o chão, e a vida ficou mais real. Com muito mais poesia e sabedoria, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) deixou registrado, em seu clássico Além do Bem e do Mal, um consolo para esses momentos de descoberta: “Quando a alma jovem, martirizada por puras desilusões, finalmente se volta desconfiada sobre si mesma (...), como se enraivece então, como se vinga por sua demorada auto-obcecação, com se ela tivesse sido uma cegueira voluntária! (...) Nessa transição (...) compreendemos que tudo isso era ainda juventude!” Ou seja, muita calma nessa hora! A palavra maturidade, não importa o número de velinhas que sopre em seu aniversário, ajuda na exploração interior. “Identificar quais emoções tentamos esconder por trás das máscaras, como vergonha, medo, orgulho, é o primeiro passo”, diz Maria das Graças. “Quando descobrir algo, trabalhe a questão sem pressa. Não se trata de passar de ano, é seu processo de reforma, de encontro. Faça no seu ritmo”, orienta a psicóloga.

Encruzilhadas

Sem tanta parcimônia, algumas defesas que temos simplesmente evaporam após intensas experiências que não nos deixam opções, a não ser sentir “pra valer” a vida. Como nos emblemáticos ritos de passagem – o nascimento, o casamento, a morte, o renascimento –, cheios de vivências tão transformadoras. Não era exatamente o que Tiche Vianna buscava, mas para ela o gravíssimo acidente de carro que sofreu dez anos atrás trouxe um incrível renascimento. A morte rondou sua vida, e por um tempo ela “quase não retornou” do longo coma. Quando acordou, veio resoluta: para continuar a viver, faria de cada instante uma experiência urgente e imprescindível. “Eu simplesmente não tive escolha. Fui obrigada a aumentar a intensidade do que vivia, ou estaria morta”, diz. Nesse novo batismo, ela pôde enfrentar inúmeras barreiras internas – principalmente porque ela é bastante familiarizada com o tema. Tiche ensina a seus alunos da companhia de teatro Barracão, em Campinas, como desenvolver suas próprias máscaras. Até por saber bem como foi difícil remover algumas barricadas emocionais, Tiche faz questão de se manter inquieta, sem se acomodar. “O mais importante para mim foi reconhecer os passos que dei na vida, assim como os que não tive coragem de dar. Com isso, aprendi que sem riscos não há vida.”

Outro inquieto com quem pude conversar foi Federico Marmori, um italiano simpático que nasceu em Roma, tem casa em Paris e faz doutorado na China. Prefere comer pouco, mas sua família não vê sentido nisso. A cada visita que faz a seus tios passa, praticamente, todo seu tempo com eles à mesa, seja por um dia, um fim de semana ou mais. Pão, vinho e saladas em demasia não o impedem de ser submetido a um ou dois pratos (enormes) de pasta fumegante, com muito molho, em cada uma das refeições. Federico não se importa, chega a ser um momento nostálgico para ele, que mudou todos os hábitos familiares em nome de uma saúde equilibrada. Tudo começou em uma viagem que fez ao Nepal, quando tinha 18 anos (hoje ultrapassa os 50, sem definir em quanto). “Foram meses e meses andando por estradas lamacentas, experimentando provações. Para conseguir comida e abrigo, me comunicava através de sinais. Muitas vezes dormi ao relento, observando as estrelas, e a solidão sem fim daquela jornada mudou minha vida completamente”, conta.

Até hoje, quando começa a falar de experiências de vida, Federico sempre cita essa viagem – feita há mais de 30 anos. E complementa: “Um dia, faço de novo. Foi ali que descobri quem eu era, adquiri os hábitos que me norteiam e decidi estudar plantas medicinais”. Através de uma simples escolha – realizar uma longa viagem –, Federico traçou um novo molde para sua vida, diferente do que recebera na educação paterna, e que se mantém firme e forte, apesar dos apelos. Que não vêm só da família, diga-se de passagem. Influências e sugestões recebemos de todos os lados, da mídia e da indústria da propaganda. Existem muitas propostas de alienação, que passam pelas roupas que precisamos vestir para estar na moda e chegam aos restaurantes a que precisamos ir para sermos vistos e comentados. “É preciso olhar para sua própria vida e construir seus próprios significados. O cultivo da própria personalidade é uma iniciativa que irá ajudar na construção da realidade que você decide viver, e não a que os outros lhe impõem. Um cidadão de bem, aliás, deve ajustar a sincronia da sua vida a si mesmo”, diz Marcos Ferreira, membro do Conselho Nacional de Psicologia.

A receita

Bem, aqui estamos a poucas linhas do fim da reportagem. Se eu conseguisse arriscar uma só dica que fosse a campeã para a investigação da persona, eu falaria que mudar a freqüência seria a chave para vermos aquilo que, muito provavelmente, está escrito na nossa cara. Em correspondência a isso, mover a câmera da nossa percepção por dentro, por fora, em nós e nos outros. Rever nosso “fundo das emoções”, questionar a beira rasa dos hábitos diários. Anotar gostos, desgostos, afetos, preferências, manias, gírias, cacoetes. Experimentar dizer diferente, falar de outra forma, sentir o que se sente. Aceitar nossas semelhanças, valorizar nossas particularidades. Em suma, ver, de verdade. “Ousar saber quem se é para poder repensar a vida e tornar-se quem se pode ser”, como afirma Gianetti em seu livro citado anteriormente.

Mas eu, definitivamente, abro mão de saber qual seria o caminho das pedras nessa busca tão pessoal. Prefiro que pensemos juntos em um enorme painel. Onde você pudesse colocar todas as fotos que tem de você mesmo (e as que já perdeu ou rasgou ou xingou e jogou fora). Junto a elas, não economize: anexe as imagens de pessoas importantes de sua vida. Isso, deixe o mural completo, sem faltar nada nem ninguém. E faça de conta que ele existe, digamos, em alguma parede da sua casa. Uma que estivesse no seu caminho quando fosse deixar o recinto, ir para a rua e encarar a labuta. Todos os dias você escolheria uma foto. Em um dia, você olharia para a parede de fotos e seria, novamente, uma criança a jogar bola com os moleques da rua. Noutro dia, voltaria a ser parte da turma da faculdade, cantando a pleno pulmão um dos hits daquela época.

E em um belo dia, sem mais nem menos, você seria apenas o ponto zero, o que não está escrito, o que não foi feito nem fotografado ainda. Seria o ator principal da sua próxima imagem, aquela que você construísse, com consciência, para si e para o exame do mundo. Enfim, um dia, seria você o autor da sua própria identidade, da sua própria vida. Dono da sua imagem.

Para saber mais

Livros:
• Espaço-tempo e Além, Bob Toben e Fred Alan Wolf, Cultrix
• Auto-engano, Eduardo Giannetti, Companhia das Letras
• Não Nascemos Prontos, Mario Sergio Cortella, Vozes
• Tábula Rasa, Steven Pinker, Companhia das Letras