quinta-feira, novembro 24, 2011

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...




Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,




E assim será possível; mas hoje não...




Não, hoje nada; hoje não posso.




A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,




O sono da minha vida real, intercalado,




O cansaço antecipado e infinito,




Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...




Esta espécie de alma...




Só depois de amanhã...




Hoje quero preparar-me,




Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...




Ele é que é decisivo.




Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...




Amanhã é o dia dos planos.




Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;




Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...




Tenho vontade de chorar,




Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...










Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.




Só depois de amanhã...




Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.




Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...




Depois de amanhã serei outro,




A minha vida triunfar-se-á,




Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático




Serão convocadas por um edital...




Mas por um edital de amanhã...




Hoje quero dormir, redigirei amanhã...




Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?




Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,




Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...




Antes, não...




Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.




Só depois de amanhã...




Tenho sono como o frio de um cão vadio.




Tenho muito sono.




Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...




Sim, talvez só depois de amanhã...










O porvir...




Sim, o porvir...










(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)